terça-feira, 4 de dezembro de 2012

“Antes de sair da merda, é preciso refletir a respeito” (Iuri Petrovski). Reflexões criminológicas em torno do mau cheiro.







Um experimento social inovador em uma Vara de Execução Penal de Santa Catarina compensa quatro dias de pena pela leitura de clássicos da literatura, como Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski. A ideia “inovadora”, que promete reverter o “caráter” e “personalidade” de criminosos por meio da leitura, insinua uma inevitável receptividade, mas não revela o que de fato está em sua base teórica. 

Para entender o que se passa com os presos-leitores, vou posar no teatrólogo Matéi Visniec, especialmente em sua peça “A História do Comunismo contada aos Doentes Mentais” (recentemente lançado no Brasil pela editora Realizações). A peça se passa em um Hospício, para onde havia sido enviado o escritor IURI PETROVSKI, com a tarefa de ensinar os preceitos da revolução comunista de outubro aos doentes mentais, pouco antes da morte de Stalin. 

A primeira aula começa abordando o conceito de Utopia. Sem rodeios, IURI explica assim aos doentes mentais: 

“Abram bem a boca. Digam “u”. Respirem. Encham os pulmões de ar. Mais. Mais ainda. Encham Os pulmões de ar. Mais. Digam “utopia”. Outra vez. “Utopia”. Concentrem-se bem, é uma palavra que faz uma curva ascendente. Como um cavalo empinando. “Utopia”. Ouvem como ela sobe? Sobe e dissipa-se no ar. Começa dentro da boca e termina em nenhum lu- gar. “Utopiiia”. Muito bem. Então, o que é uma utopia? Uma utopia é quando alguém está na merda e quer sair dela. Mas antes de sair da merda, é preciso refletir a respeito. E se você refletir bem, vai ver que não é o único que está na merda e que deseja sair dela. Então, você pensa e vê que não pode sair da merda sozinho, que só pode sair da merda junto com os outros, os camaradas que estão na merda junto com você”. 

Antes de sair da merda, é preciso refletir a respeito. A partir desta reflexão, a leitura de textos literários esconde antigos conceitos, cujo motor não será capaz de vencer o longo caminho entre sair da merda e o livrar-se do mau cheiro. O projeto deixa evidente os seus fundamentos biologistas conservadores e, o que é pior, encontra inteira ressonância nos momentos ideológicos positivistas mais fantasmagóricos do positivismo penal. 

Leituras dissociadas de projetos inclusivos não são capazes de reverter o “selvagerismo marginal”. Primeiramente, é preciso dizer que Crime e Castigo trata-se de uma obra apropriada a reforçar o sentimento de culpa, enquanto menos surtirá efeito para garantir a reintegração social. O reducionismo biologista de explicação do caráter e da personalidade do sujeito não mudará alguém a partir de leituras que focam os sentimentos de culpa. Nem o sistema social de controle e seus séculos de exploração da culpa nunca estiveram tão longe de controlar a criminalidade e não será agora que isso ocorrerá. Não será ensinando opera para cães que vamos ter animais racionais, principalmente porque cães não reconhecem como dono apenas quem os aprisiona. 

Não se alcança a revolução penitenciária assim. Nunca. O ponto central do projeto reside na crença de que o homem está em constante progresso, como pensava Stuart Mill, e que o sujeito cresce com iniciativas nobres e sábias, como ler clássicos da literatura, ouvir Mozart ou divertir-se com o mais refinado vinho. As políticas ressocializadoras encontra espaço nas teorias subculturais, que aprisionam o sujeito em seu submundo e acreditam que ressocializar é o mesmo que conferir-lhes o prazer de desfrutar de nossos mais elevados valores. Esses pontos de vista partem de concepções conservadoras, que ignoram a própria realidade e identidade do sujeito aprisionado. São essas ideias que dão base à função R da pena (Zaffaroni) e todos os discursos em torno da Ressocialização, Reintrodução, Readaptação etc. 

Almoçar com o diretor do Hospício não faz ninguém menos doente. Podemos mesmo REINTRODUZIR valores por meio da prisão? Paremos a petulância, de enganar a si mesmo e de conduzir o homem como gado ao fosso da igualdade. 

Dostoiévski não paga contas, não devolve emprego, não cria vínculos familiares e sociais aos que estão socialmente excluídos. E o que pior, Dostoiévski não derruba os muros dos condomínios residenciais fechados, na muda o pensar do sujeito excludente; não aplaca o preconceito estigmatizante daqueles que já estão satisfeitos de literatura, de ouvir Mozart e se divertir com o mais refinado vinho. 

Logo, logo novos projetos semelhantes seguirão a este, como se estivéssemos repetindo o gesto de Maria Antonieta para os presos. Que comam brioche! 

A leitura pode ser um bom início, mas será um simples ponto final se isolada de uma reflexão crítica que não isente a culpa da própria sociedade. 

Antes de sair da merda, é preciso refletir a respeito.




Vamos a reportagem.




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