sábado, 17 de março de 2012

LIVRO: A anatomia da destrutividade humana POR José Maria Martins






A anatomia da destrutividade humana POR José Maria Martins   

“A anatomia da destrutividade humana”, o imenso e rigoroso trabalho de Fromm (1975), um de seus últimos, apesar do inegável valor, não recebeu a devida atenção nos meios acadêmicos, talvez por ter sido publicado num momento em que a perspectiva culturalista estava deixando de ser a moda entre uma intelectualidade mais preocupada em parecer informada sobre a última novidade que vinha da França do que no valor intrínseco das obras. 

A tese de Freud – também defendida por Lorenz, Desmond Morris e outros instintivistas – que Fromm questiona, pode ser descrita assim: a agressividade do homem, expressa no seu comportamento tal como se registra na guerra, no crime, nos conflitos pessoais e em todas as espécies de comportamentos destrutivos e sádicos, é devida a um instinto filogeneticamente programado, inato, que procura descarga e aguarda a ocasião propícia para exprimir-se. 

Essa tese chegou a encontrar larga aceitação, não devido à validade dos argumentos que a fundamentam, mas por ela facilmente poder transformar-se numa ideologia que ajuda a atenuar o medo daquilo que pode acontecer e a racionalizar o sentimento de impotência das pessoas. Fromm pergunta:
Que poderia ser mais satisfatório às pessoas que mostram-se amedrontadas e sentem-se impotentes para mudar o rumo das coisas que conduzem à destruição do que uma teoria que nos assegura que a violência origina-se de nossa natureza animal, de uma ingovernável impulsão para a agressão, e que o melhor que temos a fazer, como afirma Lorenz, é compreender a lei da evolução que é o elemento responsável pela potência dessa impulsão? (1975, p.22).

Um outro motivo para a preferência por uma solução instintivista encontra-se no fato de que um estudo sério das causas da destrutividade exige o exame crítico das premissas básicas do nosso sistema social, expondo seus aspectos ideológicos e irracionais, e violando tabus que se encontram por trás de palavras solenizadas como “honra”, “defesa”, “patriotismo”, etc. Nada menos que uma análise em profundidade do nosso sistema social é necessária para desvelar os motivos da ampliação da destrutividade e para se encontrar os caminhos e os meios para reduzi-la. A teoria instintivista, Fromm suspeita, pode ser utilizada como uma justificativa para se evitar a árdua tarefa de levar a cabo uma análise dessa natureza.

O registro dos dados empíricos torna insustentável a tese instintivista. A paleontologia, a antropologia e a história oferecem ampla comprovação contra ela. Fromm lista alguns desses argumentos:
1.     os grupos humanos diferem tão fundamentalmente quanto ao respectivo grau de destrutividade que os fatos não podem explicar-se pela admissão de que a destrutividade e a crueldade seriam inatas;
2.     os vários graus de destrutividade apresentam uma correlação consistente com outros fatores psíquicos e com diferenças nas estruturas sociais, e
3.     o grau de destrutividade aumenta com a intensificação do desenvolvimento da civilização.

Se fosse dotado apenas da agressividade biológica que partilha com seus ancestrais animais, o homem seria um ser relativamente pacífico. Contudo, o homem é o único primata que tortura e elimina membros de sua própria espécie sem nenhum motivo premente biológico ou econômico, e muitas vezes faz isso com prazer. É essa agressão maligna e não programada filogeneticamente que constitui um problema e um perigo reais para nossa existência como espécie

Fromm faz uma nítida distinção entre paixões naturais e paixões do caráter. Essas últimas têm uma origem social, são resultantes das influências sociais. Talvez fosse mais adequado dizer que as paixões do caráter resultam de uma atuação dos fatores sociais sobre os naturais, já que não faz sentido afirmar que a cultura cria uma paixão a partir do nada. 

Ele analisou trinta culturas do ponto de vista agressividade versus pacificidade, análise que lhe permitiu discriminar três sistemas sociais diferentes, claramente delineados (A, B e C). Se a tese instintivista estivesse correta, a destrutividade e a crueldade seriam necessariamente encontradas em todas as sociedades ou, se não, pelo menos os sinais indicativos de que essas manifestações existiam mas encontravam-se reprimidas. A existência de apenas uma sociedade em que a destrutividade não existisse, nem manifestada nem reprimida, já seria suficiente para contestar a tese de que ela é inata. Fromm encontrou oito que se situavam no sistema A (sociedades não destrutivas e sim afirmativas da vida), catorze no B (sociedades agressivas, mas não destrutivas) e seis no C (sociedades destrutivas.) As duas restantes, incluindo os Hopi, apresentaram dificuldades em serem claramente situadas num ou noutro sistema. As várias sociedades foram descritas por ele da seguinte forma: 


Sistema A: Sociedades Afirmativas da Vida

Nesse sistema, os ideais, costumes e instituições servem à preservação e ao desenvolvimento da vida, sob todas as suas formas. Há um mínimo de hostilidade, de violência ou de crueldade entre as pessoas, nenhuma punição drástica, quase nenhum crime. A instituição da guerra está ausente ou desempenha um papel completamente insignificante. As crianças são tratadas com doçura, não existe nenhuma pena corporal severa; as mulheres, em geral, encontram-se em pé de igualdade com os homens ou, pelo menos não são exploradas e humilhadas; há uma atitude geralmente permissiva e afirmativa com relação ao sexo. Registra-se pouca inveja, notam-se pouca cobiça, voracidade e desejo de explorar o próximo. Há também diminuta competição e individualismo e uma ampla faixa de cooperação; a propriedade pessoal recai apenas nas coisas de uso imediato. Vê-se uma atitude geral de lealdade e confiança, não apenas uns nos outros, mas também na natureza. Há uma prevalência geral de bom humor e uma ausência relativa de estados de ânimo depressivos. São exemplos de sociedades que se classificam sob essa categoria afirmativa de vida os Esquimós Polares, os Zuñis, os Arapesh da Montanhas, os Semangs e os Aranda. 


Sistema B: Sociedades Agressivas Não-Destrutivas

Esse sistema tem em comum com o primeiro o fato básico de não ser destrutivo, mas difere dele em que a agressividade e a guerra, embora não centrais, são ocorrências normais; também, a competição, a hierarquia e o individualismo encontram-se presentes em seu meio. Essas sociedades não estão, de maneira alguma, impregnadas pela crueldade ou por uma exagerada carga de suspeições, mas não apresentam aquela espécie de docilidade e de lealdade características das sociedades que pertencem ao sistema A. O sistema B poderia, talvez, ser mais bem caracterizado afirmando-se que está imbuído de um espírito de agressividade masculina, de individualismo, do desejo de possuir as coisas e de realizar determinadas tarefas, ainda que não de forma destrutiva. Exemplos: os Esquimós da Groenlândia, os Ojibwas, os Samoanos, os Maoris, os Tasmanianos, os Incas.


Sistema C: Sociedades Destrutivas

Essas são bem diversas, caracterizadas por muita violência interpessoal, por destrutividade, por agressão e por crueldade – tanto no interior das sociedades como externamente, contra terceiros – pelo prazer de praticar a guerra, pela perversidade e pela traição. Toda a atmosfera da vida está perpassada de hostilidade, de tensão e de medo. Habitualmente, vê-se um alto índice de competição, dá-se grande importância à propriedade privada (se não em coisas materiais, pelo menos em símbolos), registram-se rígidas hierarquias e um teor considerável de práticas de guerra. Exemplos são os Dobuanos, os Ganda, os Witotos, os Haidas, os Astecas.

O contraste fundamental é entre os sistemas A e B, por um lado, ambos afirmativos de vida, e o sistema C, que é basicamente cruel ou destrutivo, ou seja, sádico ou necrófilo. Sem dúvida, muitas tribos de índios brasileiros do Xingu seriam classificadas também no sistema A ou no B. Tive a oportunidade de ouvir recentemente um dos irmãos Villas-Boas num congresso de psicologia em Manaus. Ele afirmava que, depois de décadas em contato com eles, nunca tinha visto um índio bater numa criança. 

Ao terminar a descrição detalhada de uma das sociedades do sistema A, Fromm lembra a conhecida carta de Freud a Einstein sobre a guerra, em que ele diz ter ouvido sobre a existência de sociedades primitivas pacíficas, cuja vida é tranqüila, sem coerção nem agressão. Freud escreve que mal podia acreditar nisso e que gostaria de ter mais informações sobre esses seres afortunados. Fromm comenta: “Não sei qual teria sido a atitude de Freud se tivesse sabido mais coisas sobre esses ‘seres afortunados’. Parece que nunca fez uma tentativa mais séria para informar-se a respeito deles” (1975, p.273).

O que Freud via como manifestações de uma pulsão de morte inata são as manifestações deterioradas da raiva e de outras emoções que sofreram interferências. A necessidade de se decidir com o máximo de rigor científico a questão da existência ou não de uma pulsão de morte inata é de importância crucial não só para a educação como para a prática das terapias psicológicas. Parece óbvio que qualquer educador ou terapeuta, psicanalista ou não, que aceite a tese da existência da pulsão de morte irá, implícita ou explicitamente, opor-se à idéia de que a experiência plena das emoções (em si e nos seus alunos ou pacientes) seja terapêutica e emancipadora, pois nesse caso estaria liberando também a destrutividade, a crueldade, etc.. A ênfase, então, no controle racional, na elaboração e reconstrução verbal, atividades predominantemente cognitivas, será nada mais que uma conseqüência lógica da premissa de que parte. Entretanto, se tal pulsão não existe, como sugerem os dados antropológicos e clínicos, a rigidez disciplinar e a ênfase intelectualista nos elementos verbais implicam o risco de se estar mantendo e acentuando uma forma de castração emocional. 

Referências:

FROMM, Erich. A Anatomia da destrutividade Humana. Rio: Zahar, 1975.


FONTE

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