sábado, 7 de maio de 2011

Reflexões para um Judiciário perneta

Publiquei no site do IBCCRIM o seguinte artigo:


Uma reflexão para o discurso de Fux 

Fábio Ataíde 

Juiz de Direito/RN e Professor de Direito Penal/UFRN 

PALAVRAS-CHAVE: Igualdade. Discurso. Violência Estrutural. Sistema Penal.
Quando de sua sabatina para preencher a 11ª vaga no Supremo Tribunal Federal, o Ministro Luiz Fux ocupou o Senado com um discurso politicamente correto, tomando o Judiciário como um agente institucional para o controle das nossas desigualdades. Além de correta, a mensagem deve ser reconhecida como emblemática para a história da Suprema Corte. Porém, ainda cabe refletir sobre as dificuldades para torná-la eficaz à frente das estruturas sociais.
A expansão regulatória do capitalismo neoliberal deixou o Judiciário em situação delicada. Novas ferramentas intervencionistas vieram – dentre as quais o próprio juiz – para dar ouvidos a uma sociedade tomada por expectativas. O sistema Judiciário foi forçado ao extremo, mesmo diante da inexistência de grandes ideias salvadoras. O mundo civilizado conhece quase todas as medidas para um Judiciário eficiente. Nós é que pouco nos interessamos por elas e ainda tentamos encontrar um novo modelo adequado à nossa realidade. Realidade aqui é utilizada como sinônimo de metadesorganização (M. Castells).
Tendo que JOHAN GALTUNG tipificou a violência em (a) pessoal; (b) estrutural e (c) cultural, sabemos que ela – a violência – pode mesmo ter suas raízes originadas nas estruturas de poder. Fincado na violência estrutural, encontro as causas do problema judiciário nas próprias estruturais da sociedade, responsáveis pela má distribuição de poder (HO, 2007, p. 4). A sociedade soube muito bem estruturar as suas deficiências, habilmente mostrando desinteressada por mecanismos que garantam a todos a mesma composição básica de educação, saneamento ou repressão punitiva. Sabe-se muito bem transferir recursos aos necessitados, mas pouco se faz para romper o ciclo de dependência por meio da tecnologia do saber.
E é o Judiciário que vai consertar esse estado (ou Estado) de coisas? O problema é que um Poder habituado a ter o silêncio como resposta também pode fazer-se instrumento de controle. Dentro deste quadro, a função precípua do juiz não tem a ver com a reprodução dos valores de uma classe sobre outra, nem tampouco assegurar a sobrevida do modelo econômico do País.
O Judiciário parece agir como o capitão Ahab, de Moby Dick, enverando numa perseguição incessante da baleia que lhe tirou a perna. Seja como for, o novo discurso político – tal qual como preconizado pelo Min. Luiz Fux – precisa perseguir o direito à inclusão como meta democrática do Estado, reconhecendo o desequilíbrio das minorias diante das estruturas sociais. A inclusão aqui significa, v.g., a exclusão do direito penal de certos assuntos ou contra certas pessoas. Neste século, o sério questionamento ao direito de punir não apenas apressa uma profunda mudança nas soluções dos conflitos individuais, mas redefine os papéis das agências punitivas, desde juízes, promotores até delegados e defensores.
O direito penal pode sim agir dividindo as fronteiras sociais, classificando quem comete certos delitos e isto, de resto, agrava-se porque a seleção de magistrados ocorre, predominantemente, dentre pessoas do mesmo estamento, o que contribui para a manutenção de um padrão de linguagem classificatório, para não dizer discriminatório (ZAFFARONI, 1999, p. 75). Contudo, é preciso advertir que o juiz não pode ser compreendido sob uma perspectiva reducionista assim, como pertencente a uma elite da sociedade (cf. VÁZQUEZ ROSSI, 2006, p. 115; ATAÍDE, 2010, p. 206).
Para que assim seja, o ensino jurídico não deve ser apenas pautado por estudos limitados aos programas de ingresso à carreira pública. Os concursos públicos são cada vez mais rigorosos e concorridos, porém não necessariamente voltados à valorização do conhecimento teórico. A valorização de candidatos que se dedicam ao estudo acrítico da estrutura legislativa não beneficia a seleção de pessoas aptas para corrigir o sistema social e sua máquina judiciária. E o que é pior ainda. O ingresso em determinados cargos públicos confere status e privilégios ao cidadão, às vezes impedindo-o de revisar o papel das estruturas sociais. Isto indica que a decadência do ensino jurídico cria um grande problema para o Estado e sua política governamental.
No estrito campo penal, as metas de todo dia buscam ampliar a produção dos juízes, mas pouco refletem a capacidade de produção. A cobrança por produtividade judicial vem sem assegurar os meios e as causas estruturais da morosidade "no" e "do" Judiciário.
Incrivelmente, a rotina do Supremo Tribunal Federal em matéria criminal impressiona pelos números de casos julgados, porém quase não existem execuções de penas para agentes com foro por prerrogativa, o que torna a sua rotina menos relevante do que o necessário. Desde este ponto de vista, parece mais incrível saber que a face autoritária das estruturas pode ser reconhecida na corriqueira aplicação nos tribunais superiores do princípio da insignificância para afastar a tipificação material de pequenos crimes patrimoniais. Em 2006, foi amplamente divulgado o caso de uma doméstica, que ficou presa durante 128 dias por furtar um pote de manteiga a custo de R$ 5,00, enquanto, no mesmo ano, um banqueiro, condenado a 21 anos de prisão por desviar 3 bilhões de reais, nem pensava em cumprir pena.
Enfim, por esse e outros casos, o Supremo ainda está para fazer história e, mesmo havendo um avanço inexorável, talvez isso não indique que mais crucial do que perdoar ou punir os culpados é saber quais condutas devem ser punidas e, ainda, porque perdoamos uns e não condenamos outros. Vale dizer, finalmente, MARCELO NEVES lembra que no final do século XX cresce a discussão em torno de uma tensão entre o aumento dos encargos sociais do Estado e a diminuição de sua capacidade para interferir na sociedade (2007, p. 29). Estão evidentes as agruras de um sistema normativo incapaz de inventar a sociedade, mas que está sempre sendo reinventado por ela (CRUET, 1908). Isto é fato.
Levando a questão para a postura da magistratura, verifico que o juiz pode fazer-se instrumento do controle dominante e, enquanto isso acontecer, não haverá nenhuma mudança; nenhuma inclusão; só o verbo existirá! E isto, de resto, significa que o Judiciário deve agir não somente ciente das estruturas que lhe faltam, mas igualmente consciente de que a matança de nenhuma baleia será capaz de dar pernas a quem não tem.
Referências
ATAÍDE, Fábio. “Colisão Entre Poder Punitivo do Estado e Garantia Constitucional da Defesa”. Curitiba: Juruá, 2010.
HO, Kathleen. Structural Violence as a Human Rights Violation. “Essex Human Rights Review”. Vol. 4, no. 2, setembro, 2007.
JEAN CRUET, A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis. Sem tradutor mencionado. Lisboa: Antiga Casa Bertrand, 1908
NEVES, MARCELO. “A Constitucionalização Simbólica”. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
VÁZQUEZ ROSSI, Jorge E. "La Defensa Penal". 4ª ed., Buenos Aires: Rubinzal - Culzoni Editores, 2006.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIARANGELI, José Henrique. “Manual de Direito Penal Brasileiro”. 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

ATAÌDE, Fábio, "Uma reflexão para o discurso de fux". Disponível em: (http://www.ibccrim.org.br) 

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