quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Artigo: GERENCIAMENTO E LIDERANÇA NO JUDICIÁRIO

Publiquei o seguinte artigo na última edição da Revista Ritos da Associação dos Magistrados do RN:

NOVOS PARADIGMAS PARA
GERENCIAMENTO E LIDERANÇA NO JUDICIÁRIO

Fábio Wellington Ataíde Alves
(http://fabioataide.blogspot.com/)
Juiz de Direito/RN
Mestre em Direito
Conselheiro da Associação dos Magistrados/RN


SUMÁRIO. Advertências iniciais. O juiz fora do centro gravitacional da gestão (?). O momento dos resultados. A quebra do monopólio da liderança. Considerações finais

COMO CITAR: ALVES, Fábio Wellington Ataíde. “Novos Paradigmas para Gerenciamento e Liderança no Judiciário”. Revista Ritos. Natal: Associação dos Magistrados do Rio Grande do Norte, Ano IV, n. 4, p. 8-11, dez/2008.



Advertências iniciais

Desde muito tempo tem-se conhecido inúmeros juízes que se notabilizaram pela ousadia de como aplicaram a lei em certos casos difíceis. Foi assim que no final da década de 70, o juiz Márcio José de Moraes, com apenas 32 anos, responsabilizou a União pela morte do jornalista Vladmir Herzog. À época, o então juiz criminal Álvaro Mayrink da Costa também proferiu decisões na esfera criminal que ficaram marcadas pela especialidade, fugindo da literalidade do texto legal. De fato, estes e outros juízes serviram de modelo para uma leva de magistrados que haviam "desaprendido" a decidir depois do Ato Institucional n. 5/68. Mais recentemente, vários juízes têm se saído muito bem neste campo estritamente jurisdicional, porém ainda são poucos os que conseguiram estabelecer mudança de paradigma na atividade de gestão do trabalho administrativo judiciário. Foi até preciso criar-se o Prêmio Innovare com o fim de estimular o registro das práticas inovadoras da gestão judiciária no Brasil.
A escassez de juízes inovadores no âmbito gerencial dá-se por muitos motivos, sendo que uma das principais razões reside no fato de que ainda não sofremos um choque de gestão para a diversificação das práticas administrativas, o que não tem sido fácil, porque em linhas gerais o juiz ainda se considera o agente mais importante de uma Vara Judiciária. Olhando detidamente para o ponto de vista estritamente gerencial, digo que talvez o juiz não seja nem mesmo a segunda pessoa mais importante no foro. Para muitos, podem parecer insensatas tais afirmações, a tomar como referência o olhar do velho paradigma da gestão judiciária que ainda prevalece entre nós.
Além do que, o pensamento da liderança ainda suscita a impressão de que se trata de um assunto restrito aos profissionais liberais e não a agentes públicos como os juízes. Cappelletti assinala que muitos juízes querem conciliar as garantias institucionais com a independência de um profissional liberal (1). Para esse efeito, este pequeno artigo não se propõe a apregoar a irresponsabilidade perante os órgãos de controle e tampouco chega a defender que os sistemas de controles tornem-se amarras contra a liderança judiciária.
Do que se disse, demonstraremos que a administração judiciária tem a necessidade urgente de se pautar por meio de novos paradigmas, justamente aqueles que não posicionam o juiz no centro gravitacional do Judiciário. Desde logo, advirto que este texto destina-se especialmente aos jovens juízes - ainda não acostumados com o modelo de administração judiciária prevalente - e aos juízes mais experientes e desejosos por mudanças ou pelo menos abertos a elas.

O juiz fora do centro gravitacional da gestão (?)

Feitas as advertências, impõe-se agora esquadrinhar os motivos pelos quais o juiz não mais deve ser considerado o agente mais importante do ambiente judiciário. No novo paradigma da administração judiciária, o agente mais importe trata-se do cliente, este não apenas visto tecnicamente como uma parte da relação processual, mas como aquele em função de que toda atividade judiciária se motiva. Portanto, no velho paradigma centrado na pessoa do juiz, a parte não é reconhecida como uma consumidora de direitos públicos imediatos; e tampouco a sua satisfação é preocupação maior do juiz.
A crise do judiciário, fenômeno que se tornou claro nos últimos anos, tem forçado a estrutura de poder a adotar mudanças substanciais para com a realização de direitos por meio do acesso efetivo à justiça material. Essa exigência cobra do juiz uma drástica ruptura com padrões de comportamentos consagrados no foro. O novo paradigma centrado na figura do cliente não apenas força uma mudança na relação juiz-parte, como também na relação juiz-servidor.
Insisto. O novo paradigma exige do juiz uma postura administrativa calcada em produção de resultados. Na relação juiz-servidor, o esforço por resultados parte da idéia de que o juiz deve ser o responsável pela liderança e gerenciamento do ambiente de sua secretaria judiciária, sem esquecer, no entanto, que os servidores, individualmente, podem ser gerentes e líderes no exercício de suas respectivas funções. Como o juiz já não é mais o agente mais importante da vara, ele também não é o único gerente ou o único líder na produção judiciária.
Para estimular a produção de resultados, é preciso que o Judiciário estabeleça uma relação com os seus servidores baseada na estimulação de iniciativas interiores e no senso de auto-responsabilidade e auto-conhecimento de cada um. Portanto, dentro deste quadro, o servidor deve ser motivado a produzir não em razão de um comando obrigatório que parte de cima para baixo. Muito ao contrário, o novo paradigma estimula o servidor a produzir resultados como membro de uma equipe liderada pelo juiz.
O velho paradigma, contudo, ainda se funda em idéias incapazes de elevar a dignidade do ambiente de trabalho, porquanto trata os servidores como se não fossem capazes de liderança. Sendo grosseiro, poderíamos dizer que este velho modelo aproxima-se das técnicas de adestramento de animais. Um servidor bem “adestrado” não se torna melhor como pessoa apena porque faz o que lhe mandam.
Quando adestramos um cão, por exemplo, não temos um animal melhor para a sobrevivência da espécie no planeta. O cão adestrado é incapaz de transmitir essas habilidades para outros animais. O adestramento somente pode ser reconhecido como algo positivo aos olhos do treinador ou de quem aprecia a sua arte. E pronto. E é este tipo de visão limitada, muito comum no ambiente judiciário, que alimenta o velho paradigma, dando motivo para que juízes “adestrem” seus servidores, os quais podem ser excelentes cumpridores de ordens por meios de “delegação restrita” do tipo: suba, desça, venha, vá, senta, etc. No final de cada comando, o agradecimento pode vir em forma de “muito bem garoto” e nada mais.
Se queremos conseguir líderes e gerentes para um Poder Judiciário renovado, cabe-nos ampliar os sistemas clássicos de delegações de tarefas e isto significa dizer que o juiz terá menos controle sobre o fazer-judiciário-diário. Esta aparente falta de “controles” pode causar tremores em muitos magistrados, mas não em um líder de uma equipe de trabalho fundada em resultados.

O momento dos resultados

No Século XXI, precisamos de resultados e de delegação ampla. Ou, dizendo de outra forma, chegou a hora de um choque de gestão judiciária, que mude hábitos no ambiente da secretária, instituindo um espírito de trabalho em equipe e que todos possam ser líderes de seus próprios resultados.
O ambiente de secretaria pode deixar de ser o local de um único líder para tornar-se espaço para muitos gerentes e líderes, cada qual nos limites de sua função. Neste novo ambiente, é preciso entender que de agora em diante os problemas, cuja solução no velho paradigma cabiam exclusivamente ao juiz, são de responsabilidade de uma equipe. Todos necessitam saber e fazer algo em torno da busca de resultados. No ambiente de liderança, os servidores se ajudam mutuamente, estabelecidos por um espírito de confiança e equipe. O juiz deixa de ser o agente central para tornar-se aquele que conhece o funcionamento de todas as peças do aparato judiciário, com vistas a estabelecer a comunicação entre elas, para que somente assim a secretaria possa funcionar harmonicamente.
O mais difícil ainda é que isto tudo somente será possível se acontecer uma mudança no comportamento individual de cada servidor e principalmente na percepção de como o juiz passa a resolver as questões administrativas de sua secretária.
É de fundamental importância remover do ambiente de secretaria todos servidores que não mereçam confiança ou que não estejam adequados a este novo espírito de trabalho. Se for impossível para o juiz tal tarefa, é preferível mesmo que se mantenha o sistema de trabalho baseado no velho paradigma, segundo o qual o servidor aguarda as ordens e não precisa tomar iniciativas por si só para aumentar a produção de resultados.
Seja como for, este modelo antiquado de trabalho se nutre das causas externas que impedem a produção de resultados. O servidor costuma racionalizar a sua falta de iniciativa por meio da transferência de responsabilidades. Culpa-se o tribunal, os órgãos de controles, a legislação etc.
No novo paradigma, espera-se que o servidor apenas se preocupe com as causas que estão na sua esfera de atuação, isto é, a falta de resultados precisa deixar de ser uma questão exclusiva do juiz ou dos órgãos superiores de gestão. Não estamos pretendendo aqui que os servidores abdiquem suas lutas sindicais ou simplesmente trabalhem mais para aumentarem os resultados; estamos sim voltados à preocupação de que os servidores precisam produzir mais e, se possível, trabalhando menos.
Em todas as comarcas por onde passei tive por hábito realizar um simples teste de eficiência do ambiente de secretaria. No primeiro dia de trabalho sempre me apresentei como uma parte qualquer ou mesmo como advogado, na tentativa de descobrir como estes clientes eram tratados pelos servidores das secretarias. Posso assegurar que me decepcionei com o tratamento que me foi dispensado na maioria dos casos, porque todas essas Varas estavam baseadas no velho paradigma administrativo.

A quebra do monopólio da liderança

Pode parecer estranho a afirmação de que qualquer servidor é capaz de tornar-se um líder ou um gerente de seu ambiente de trabalho. O líder é aquele que conhece os aspectos gerais do trabalho e sabe não apenas unir as partes para a tomada de decisões, mas sabe escolher qual o momento oportuno para a tomada da decisão certa. Ao lado do líder, temos também no ambiente de secretaria o gerente, pessoa não menos importante, que executa as decisões do líder e conhece detalhadamente a parte que lhe cabe executar. Ao contrário do líder, o gerente não conhece o sistema produtivo por inteiro, mas pode executar as suas próprias atribuições com mais perfeição do que qualquer outro e isto torna-o uma pessoa muito especial.
Quero mesmo deixar claro que o juiz ou o servidor tanto é líder como gerente, a depender do referencial que tomamos. Em relação às tarefas de sua secretaria, o juiz é um líder nato, mas para com o cumprimento de certas ordens da Corregedoria, por exemplo, o juiz se torna um gerente. E este mesmo tipo de raciocínio também pode se aplicar aos servidores de uma vara, de acordo com o método de trabalho estabelecido.
Numa empresa normal, o líder distribui as tarefas segundo a disponibilidade de tempo que os seus gerentes têm, isto é, conforme as tarefas que já foram assumidas anteriormente por eles e segundo a aptidão de cada um. Ressalvadas aquelas Varas onde não existem acúmulos de serviço, numa secretaria judiciária não acontece exatamente assim. O líder é forçado a distribuir as tarefas independentemente da disponibilidade de tempo que os seus gerentes têm e não importam as tarefas que já foram assumidas anteriormente ou que não foram cumpridas por eles. São essas particularidades que tornam o ambiente de secretaria uma zona crítica para o exercício da liderança.
O problema se agrava porque o líder não escolhe o funcionário com o qual vai trabalhar e a lista de prioridades depende de fatores externos ao campo de sua ação (preferências legais, prazos, recursos, precatórias etc). Em muitos casos, o juiz está obrigado a realizar tarefas que não produzirão nenhum resultado prático. Cito o exemplo da obrigatoriedade de se manter determinados livros, inteiramente substituíveis pelo sistema de informática.
É como se uma empresa com capacidade produtiva X fosse obrigado a produzir 2X, mesmo sabendo que não possui capacidade para tanto e muitos de seus produtos não serão adquiridos no mercado. Uma empresa como essa somente existe no Estado. Uma vez fiquei sem graça quando determinei que um servidor colecionasse todas as sentenças dos últimos meses em livros com índice, como prescrevem as normas de controle. Como o trabalho iria levar dias, o servidor questionou-me o motivo para a elaboração do índice, quando o sistema de informática poderia suprir tal falta. Efetivamente, precisamos confiar no sistema de informática e não havia utilidade prática para ocupar um servidor com uma tarefa incapaz de produzir resultados, mas mesmo assim determinei sem gosto o cumprimento da tarefa.
Numa empresa normal, uma situação como essa pode ser solucionada de várias formas, por meio de cancelamento de contratos, aumento da capacidade produtiva, elaboração de novos contratos para adquirir máquinas e funcionários, contratação de novos fornecedores etc. Mas isto quase sempre não é possível no Judiciário. Quando a lei cria uma nova atribuição para o Judiciário não prevê os recursos para o aumento de sua capacidade produtiva. Na maioria das vezes, o aumento da capacidade produtiva somente acontece muito tempo depois. Como diz Jean Cruet, quanto mais se editam normas, sem que exista um correspondente incremento dos recursos humanos, mais ineficiente se torna a Administração para fazer cumpri-las (2) e, por conseguinte, mais simbólicos se transformam os textos legais.
No velho paradigma administrativo, impera o método de delegação restrita de tarefas. Neste modelo de trabalho, o juiz está mais preocupado com a forma como está sendo realizado o trabalho do que propriamente com o resultado. Este método pode ser exemplificado singelamente. A delegação restrita acontece quando se tem que estacionar um veículo com a ajuda de um flanelinha, que não assume o comando direto do automóvel, mas espera que todos os seus sinais de orientação sejam atendidos pelo motorista. Neste caso, para o flanelinha torna-se mais importante a obediência aos comandos do que propriamente o resultado "estacionar o carro".
Já o modelo de delegação ampla, mais comum para os líderes, pode se assemelhar à tarefa do manobrista. Ao contrário do flanelinha, o manobrista recebe o veículo e o motorista espera – com confiança – que seja alcançado o resultado, não importando o método de trabalho. O motorista precisa confiar no manobrista e deixar uma certa margem para que este possa conduzir o veículo livremente até o estacionamento.

Considerações finais

Karl Abrecht (3) aponta que um os sete pecados capitais do serviço são 1) a apatia com que os funcionários tratam os clientes; 2) o desejo de livrar-se do cliente; 3) a hostilidade para com o cliente; 4) subestimação da capacidade intelectual do cliente; 5) o automatismo na realização de suas atribuições; 6) o rigor no cumprimento das regras da organização; e 7) o encaminhamento do cliente para outros setores da organização. Todos esses vícios são bem comuns ao ambiente da secretaria judiciária baseada no velho paradigma.
Infelizmente, nem sempre esses vícios podem ser solucionados com medidas simples. De início, pelo menos para “camuflar” a existência de tais hábitos na repartição, pode ser muito útil a designação para o atendimento ao público de um servidor que tenha bom desempenho na tarefa de se relacionar com pessoas, sempre preocupado em produzir resultados e não em evitá-los.
No âmbito da primeira Vara de Família da Comarca Mossoró, também tentei resolver a questão de outra forma. Criamos uma oficina em mediação e conciliação, que foi ministrada para todos os servidores da secretaria. A medida permitiu que os servidores compreendessem que eles também poderiam realizar conciliações com as partes (clientes) que compareciam à Vara, mesmo quando o juiz não estava presente. Ou seja, deixamos a delegação restrita e buscamos uma solução mais ampla, impulsionando os servidores a tomarem por termo os acordos ou requerimentos que eram celebrados entre as partes ainda no balcão. Para casos mais complexos, foi designado um servidor mais capacitado, bacharel em Direito, para exercer o papel de conciliador da Vara. Durante todo o horário de expediente, mesmo estando o juiz ausente, havia na Vara um conciliador de plantão para a tomada de acordos. Posteriormente, os acordos e requerimentos eram levados à apreciação do juiz. Evitou-se assim a prática de fazer com que as partes tivessem que buscar outros setores do Estado para intermediarem a resolução de seus problemas.
Em razão das particularidades do ambiente de uma secretaria judiciária, podemos afirmar que os resultados a curto prazo são sempre difíceis de se alcançarem. Este pequeno texto não tem mesmo o objetivo de detalhar práticas de gerenciamento e lideranças, mas vem para despertar a imposição de novos paradigmas voltados aos resultados, sem que isso signifique necessariamente o aumento das horas de trabalho.
No cerne do problema está a questão de como fornecer motivação para que os servidores produzam. A motivação e o aumento da capacidade produtiva dos servidores passa por meio da adoção de medidas voltadas à desburocratização (diminuição de tarefas inúteis), informatização (facilitação da realização de tarefas difíceis), treinamento, programas de motivação e avaliação dos méritos individuais etc.
Neste esforço por mudança de paradigma, Albrecht dá-nos as pistas ao explicar que é preciso mudar os organogramas que apresentam a estrutura da empresa. No modelo tradicional, o alto escalão está no topo da pirâmide organizacional, enquanto os funicionários comuns encontram-se na base e não se faz qualquer referência aos clientes. No novo paradigma, o autor propõe que se dê mais atenção aos que estão na base da pirâmide e que se coloque o cliente no topo da estrutura, sendo a satisfação deste o critério de medida de resultados (4) .Isto parece um grande desafio para o Poder Judiciário, na medida em que cada vez mais são necessárias novas práticas de liderança e gestão judiciária.
Seguindo este norte, resta-nos entender que a mudança de paradigma na administração judiciária depende muito da atuação do juiz, maneira pela qual este agente voltará a recuperar a sua crucial importância no sistema de gerenciamento de resultados. Afinal de contas, se queremos mudanças, é preciso fazer com que o juiz não seja o único agente de gerenciamento. A nota boa e ruim nisso tudo é que somente o juiz é capaz de impor essa transformação na gestão do Judiciário.

1. CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Irresponsáveis. Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Fabris, 1989, p. 11.
2. A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis. Sem tradutor mencionado. Salvador: Livraria Progresso ed., 1956, p. 177.
3.Revolução nos Serviços. Trad. de Antonio Zoratto, Sanvicente: São Paulo, 2003, p. 16.
4. Op. cit., 113.

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