sexta-feira, 19 de setembro de 2008

O sacrilégio da juíza de Santa Rita*

17 01 2008
No princípio, Deus criou um juiz. Talvez a juíza A. S. R. R., titular da Vara do Trabalho de Santa Rita, na Paraíba, pense assim sobre a origem do mundo divino. Ela está sendo palco de discussão por ter registrado numa ata de audiência que o juiz possui elevação superior a qualquer outro ser material. Nas palavras da juíza de Santa Rita, “a liberdade de decisão e a consciência interior situam o juiz dentro do mundo, em um lugar especial que o converte em um ser absoluto e incomparavelmente superior a qualquer outro ser material”. O que não deve pensar ela dos magistrados das cortes internacionais, com jurisdição sobre o planeta? O mais incrível é que a frase tenha sido proferida num contexto mundano, para negar direitos a um trabalhador rural.
Vem de longe a concepção de um juiz como uma divindade. Já no séc. XIX, sobre a missão do juiz, Jules Fabres não hesitou em proferir que “nenhuma missão é mais santa, nem mais difícil do que a sua”1. Esta comparação, quando mal entendida, dificulta bastante a criação de uma nova mentalidade para o juiz.
A imagem do juiz divino que nos interessa está traduzida na história do juiz de Igaraçu, responsável pela prisão de um cidadão que lhe tratou por “vós”. Conta Gregório de Matos que na vila de Igaraçu um desatento cidadão, por desconhecer a função de um juiz ordinário, tratou-o por “vós”. Afetado com o “desacato”, o juiz mandou-lhe autuar criminalmente. Em sua defesa, o desatencioso verberou: “Se Deus se trata por ‘tu’; e se chama a El-Rei por ‘vós’; como chamaremos nós ao juiz de Igarassú (sic)? Tu e vós e vós e tu”2.
O modelo do juiz divino acredita em sua superioridade, razão pela qual também poderia chamar-se juiz enfatuado ou rempli de soi-même. Esta falsa idéia de sacerdócio resume um sentimento gerado mesmo antes do acesso à magistratura. Perante as bancas examinadoras dos concursos para ingresso na carreira, dificilmente encontraremos um candidato com uma posição crítica em relação à função judicial. E mesmo os que a tiverem, provavelmente, evitarão a sua amostra. Boa parcela dos candidatos já demonstra aquele sentimento de espanto milagroso para com a judicatura, como se ela não necessitasse de transformação.
O argumento de que existem juízes com e sem vocação, faltando posicionamento crítico, alimenta uma falaciosa impressão de que alguns “predestinados” receberam um chamado feérico e outros não. Sobrelevar a importância da vocação do candidato, à vista de uma falsa idéia de que ele já nasce juiz, pode gerar desleixo para com a necessidade de seu permanente aprimoramento. Ninguém nasce, torna-se juiz3, mesmo porque nenhuma pessoa vem à luz sabendo. Sem dúvida, existem juízes com vocação e isso é importantíssimo para o Poder Judiciário. Mesmo o magistrado com cadência para a função jurisdicional precisa de aperfeiçoamento permanente, porque ele não é nenhuma divindade.
Eliézer Rosa sustenta que “a justiça é inspiração divina”4. Isto é um engano. A justiça é humana e, digo mais, é mundana.
A idéia de um juiz divino faz parte de uma cultura popular responsável pelo endeusamento do magistrado, o qual passa a ser cultuado, principalmente nas cidades menos politizadas, como entidades intangíveis, com condutas morais irrepreensíveis, livres dos erros. A falha dos sistemas de controle de responsabilidade induz a tal compreensão. Dalmo de Abreu Dallari revelou existir uma certa comiseração para com o magistrado, como se representasse um “sacrilégio” apontar seus defeitos5.
O endeusamento da função responde pela neutralidade judicial em seu estado inicial. O sentimento impede que o juiz volte-se à comunidade. Mantém-se distante, porque indiferente para com os problemas ao seu redor. Ele também é um juiz apolítico, ensimesmado. Eugenio Raúl Zaffaroni assentou com rigor que “não é em vão que, entre muitas besteiras, se fale da judicatura como um sacerdócio”6.
O juiz divino também não permanece longe de comportamentos aéticos. Ele propende a hostilizar o advogado que recorre de suas decisões, como se a sentença ou o despacho exibisse algo acabado, fruto de um processo cândido. Ama os estigmas do Poder e todos os seus símbolos representativos, como também rende respeito exagerado às formalidades. Deste modo, ele comprova sua distinção e, também, a sua ignorância.
“No princípio criou Deus os céus e a terra”. (Gênesis 1:1), mas no Reino dos Céus há muito mais lugar para o “homem que semeia a boa semente no seu campo” (Mateus 13:24), do que para quem tem como profissão julgar a vida alheia.
1 Apud FALCÃO, Pedro Máximo Paim. A Ética do Magistrado. In: NALINI, José Renato (Coord.). “Um Nova Ética para o Juiz”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 147.
2 Apud D’AVILA, Carmen. “Boas Maneiras”. 7ª ed., Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia: Civilização Brasileira, 1949, p. 54.
3 CARLIN, Volnei Ivo. “Deontologialogia jurídica: Ética e Justiça”. 2ª ed., Florianópolis: Obra Jurídica, 1997, p. 40.
4 “A Voz da Toga”. 3ª. ed., Goiânia: AB, 1999, p. 73.
5 “O Poder dos Juízes”. São Paulo: Saraiva, 1996, p 54.
6 “Poder Judiciário: Crise, Acertos e Desacertos”. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 161.
________________
* Artigo publicado em http://www.consulexonline.com.br, seção “in consulex”. Para saber sobre o caso, clique em Uma juíza no Vaticano.

Nenhum comentário: