sexta-feira, 19 de setembro de 2008

O consentimento do acusado para o interrogatório por videoconferência

3 12 2007
Publiquei o seguinte artigo no Boletim IBCCRIM de novembro, n. 180/07*:
O consentimento do acusado para o interrogatório por videoconferência: uma outra perspectiva para o direito de presença
Recentemente, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal editou uma de suas decisões mais importantes ao considerar inconstitucional o interrogatório por videoconferência. No julgamento[1], entendeu-se que o interrogatório à distância viola os princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa. De fato, a decisão representa uma inquestionável avanço para a efetivação dos princípios constitucionais, ao reconhecer a importância da autodefesa realizada presencialmente.
Entretanto, rigorosamente não é correto afirmar que o ordenamento infraconstitucional não disponha de nenhuma norma que regulamente o assunto. O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, promulgado pelo Brasil a partir do Decreto n. 4.388/02, abona que a “testemunha preste declarações oralmente ou por meio de gravação em vídeo ou áudio”, desde que não haja prejuízo para a defesa (art. 69, 2). A submissão do Brasil à jurisdição complementar do Tribunal Internacional Permanente[2] permite a aplicação analógica in bonam partem do Estatuto quanto aos crimes internos, ou seja, quando o próprio acusado e a defesa técnica consintam com a utilização do recurso audiovisual.
São subsistentes as críticas tempestuosas direcionadas à teleaudiência coercitiva. Grosso modo, as vantagens que são suscitadas para a adoção dessa tecnologia geralmente invocam razões de segurança ou de economia financeira, mas olvidam que a própria defesa obtenha algum benefício com o seu uso.
De outro lado, não se sustenta, igualmente, o argumento de que o interrogatório presencial proporciona o exame da personalidade do agente. Tais raciocínios estimam um resgate ao Direito Penal do autor. O interrogatório não pode ser reduzido a um momento de exame da personalidade, por meio da qual se identifique o inimigo.
Por força do princípio da ampla defesa e do devido processo legal, deve devotar-se ao acusado o sagrado direito de ser levado à presença de um juiz. Porém, também não desconhecemos que assiste ao acusado o direito de não ser conduzido coercitivamente até a autoridade jurisdicional ou, de outra forma, de ser conduzido pelo menos em imagem e som.
Sob um determinado enfoque, a decisão do STF traz um leve descompasso com o princípio que pretende proteger. Temos de nos perguntar se a autodefesa foi efetivamente protegida com a abolição do interrogatório por videoconferência. A videoconferência é uma realidade tecnológica disponível e acessível, cuja aplicação não deveria ser simplesmente banida. Ou, noutras palavras, vale dizer que não se consagra a videoconferência como um mecanismo tecnológico invariavelmente prejudicial à defesa.
Seguindo este norte, não duvidamos que a autodefesa – composta pelo direito de audiência e de presença – manifesta o caráter subjetivo (pessoal) do direito à ampla defesa. Todavia, a despeito da importância que se reveste o interrogatório para a autodefesa, convém assinalar que os princípios que norteiam a autodefesa não são os mesmos da defesa técnica. A autodefesa pode ser dispensada[3] ou até equilibrada. Desse modo, tanto são diferentes os componentes da autodefesa, que, ao contrário da defesa técnica, não se exige dela eficácia[4], uma vez que o réu pode faltar ao interrogatório ou ainda reconhecer a imputação.
Logo, em última análise, a videoconferência deveria ser um mecanismo tecnológico à disposição dos interesses da autodefesa. Sem desconsiderar as dimensões continentais de nosso país, a defesa pode preferir o emprego de videoconferência pelo mais diversos motivos. Assim, o interrogatório à distância pode, v.g., oferecer-lhe a razoável oportunidade de abreviar o tempo de encarceramento, notadamente naqueles casos em que a prisão preventiva fora decretada exclusivamente para garantir a instrução processual, sem ignorar ainda que muitos juízes deixam para analisar o pedido de liberdade provisória depois do interrogatório. Ademais, a videoconferência evita a condução coercitiva até a presença do juiz e, por isto, ameniza no processo esta cerimônia degradante, o que pode significar proveitoso para a defesa[5]. Muito embora seja possível concordar que em si o interrogatório on-line pode tornar-se uma cerimônia degradante[6], também será aceitável invocar o princípio da proporcionalidade para resguardar ao réu o direito de poder utilizar esse meio audiovisual, até mesmo evitando que se opere a cerimônia degradante de condução coercitiva.
Deve assegurar-se ao acusado o direito de empregar mecanismos tecnológicos em seu benefício. Não compete ao juiz o poder de interferir na técnica defensiva. Cabe à defesa discernir se deseja ou não participar presencialmente de tal interrogatório. O fechamento das portas para a videoconferência pode exprimir, sobretudo, uma precipitada interferência na defesa dos acusados que queiram beneficiar-se da tecnologia.
Tanto mais valioso que o direito de presença física perante o juiz se reveste o direito de identidade física do juiz. Mas, contudo, doutrina e jurisprudência seguem admitindo que o réu pode ser julgado por juiz que não o interrogou ou, pior ainda, que sequer participou da instrução criminal[7].
Havendo consentimento e benefício para a defesa, entendo admissível a videoconferência. Não seria difícil encontrar casos concretos nos quais o seu uso seja benéfico à defesa. Hipoteticamente, como negar a vantagem do emprego da videoconferência para a coleta das testemunhas da defesa residentes noutra Comarca e impossibilitadas de comparecer à sessão do Júri? A lei processual, com a anuência da jurisprudência[8], autoriza o prosseguimento do Júri, se impossível o comparecimento da testemunha (art. 455, § 2º, CPP). Em realidade, o julgamento do Júri pode até se operar com base no depoimento testemunhal colhido por precatória, privando os jurados de realizarem qualquer indagação direta à testemunha ausente, o que, de fato, representa um cerceamento de defesa, não obstante a lei assegure aos jurados o direito de perguntar diretamente (sem interferência do juiz) as testemunhas (arts. 467 e 468, CPP).
A adesão ao sistema audiovisual deve caber à defesa. É útil relembrar que um dos primeiros presos interrogados por videoconferência em São Paulo anuiu com a medida porque, segundo alegou posteriormente, quando se dirigia ao juízo tinha que passar o dia inteiro sem alimentação[9]. Com efeito, este motivo afigura-se deprimente para aceitação da videoconferência, mas não deixa de ilustrar uma realidade.
Por fim, a utilização coercitiva do interrogatório por videoconferência – contra os interesses da defesa – afronta os princípios constitucionais, porquanto desprovida de qualquer regulamentação que prescreva a restrição ao direito de presença. No entanto, a aplicação analógica do Estatuto de Roma admite que a teleconferência aconteça com a anuência do acusado, ao qual cabe o direito de equilibrar o seu direito de presença, podendo fazer-se presente perante o juiz apenas em imagem e som.

[1] STF, HC n. 88914, 2ª. T., Rel. Min. Min. Cezar Peluso, j. 14/08/2007.[2] MACHADO, Maíra Rocha. “Internacinalização do Direito Penal: a gestão de problemas internacionais por meio do crime e da pena”. São Paulo: Ed. 34/Edesp, 2004, p. 107[3] HADDAD, Henrique Bortido. “Interrogatório no Processo Penal”. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 44.[4] Cf.: MENDONÇA JUNIOR, Delosmar. “Princípios da Ampla Defesa e da Efetividade no Processo Civil Brasileiro”. São: Paulo: Malheiros, 2001, p. 59.[5] Neste sentido, cf.: BARROS, Marco Antonio de; ROMÃO, César Eduardo Lavoura. Internet e Videoconferência no Processo Penal. “Revista do Centro de Estudos Jurídicos da Justiça Federal”. Brasília, n. 32, p. 116-125, jan./mar. 2006, p. 123.[6] DOTTI, René Ariel. O interrogatório à distância: um novo tipo de cerimônia degradante. “Revista de Informação Legislativa”. Brasília, a. 34, n. 134, p. 269-274, abr./jun., 1997, p. 273.[7] STF, HC n. 76.563-SP, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 19.06.1998.
[8] STJ, HC n. 18.196-SP, Rel. Min. Vicente Leal, j. 23/4/2002.
[9] CASTELO BRANCO, Tales. Parecer Sobre Interrogatório On-Line. “Boletim IBCRRIM”. São Paulo, n. 124, março, 2003.
Fábio Wellington Ataíde Alves
* “Boletim IBCCRIM” (ISSN 1676-3661). São Paulo, n.180, p. 12-13, nov. 2007.

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